RAÍZES ANCESTRAIS
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- 8 de ago. de 2020
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Por Meryelle Macedo - 08 de agosto de 2020
Mais uma vez o sol nasceu e está brilhando para todas as pessoas. Os seus raios tímidos aquecem gentilmente o meu corpo, ascendendo a chama do sagrado que habita em mim e constitui a minha ancestralidade, com a qual sinto necessidade constante de conexão, como forma de perpetuação de valores, saberes e crenças.
Estou no jardim da minha casa e observo as flores que me circunda, uma delas está desabrochando, desejosa de conhecer o mundo. Uma brisa balança levemente as folhas das plantas, assim como os meus cabelos. Com a sensação de calmaria, fecho os olhos e em pensamento chego ao sítio da minha avó, onde parte das minhas raízes ancestrais está fixada. Estou sentada na lateral da casa de vovó. Aqui o vento está mais forte. A minha frente um “pé de ciriguela” me convida para degustar seus frutos maduros. Tiro os chinelos dos pés e depois de tanto tempo sinto o chão do terreiro de vovó. Rapidamente subo no “pé de siriguela” e me vejo como a criança de outrora. Fico feliz.
No ponto mais alto da árvore consigo vê todo o sítio, as mangueiras, pitombeiras, goiabeiras, limoeiros, flores, rochas..., vejo também o minador, a água límpida me faz aspirar por um banho, porém recordo que sempre tive medo de uma suposta cobra que morava lá, então desisto. Continuo na árvore, pássaros voam de um lugar para o outro, entoando seus cantos matinais. Sinto o sagrado falar em cada manifestação da natureza.
Surpreendo-me com a voz de vovó nos fundos da casa chamando pelas galinhas, com seu “ti ti ti” peculiar. Como é gratificante ouvi-la! Desejo tanto abraça-la que resolvo descer da árvore. Antes, porém vejo vovô retirando água da cacimba e enchendo dois baldes, enquanto admira a paisagem verde por conta do bom inverno. Desço da árvore, a areia está ficando quente, mas ainda quero está descalça. Chego à porta da frente da casa, construída em taipa de mão. Toco as paredes e interiormente agradeço pelo conhecimento técnico ali presente. O batente de pedra ainda está aqui. A porta ainda é a mesma, feita de madeira, tendo duas partes, a de baixo permanece fechada e a de cima sempre aberta para a entrada de luz.
Abro o ferrolho da porta e logo me deparo com a “parede do santo”. Os quadros com as imagens do sagrado Coração de Jesus, Santo Antônio e São Sebastião, estão enfeitados com flores rosa, feitas de papel. Sigo em direção ao quintal. Antes vejo o quarto de vovó aberto, vislumbro seu oratório, onde ajoelhada ela costuma rezar o terço. Percebo que as paredes da casa foram recentemente pintadas com um azul celeste. Chego a cozinha e tudo permanece igual. No fogão a gás a panela de arroz ainda está quente. No balcão de cimento as panelas estão enxugando. Do lado tem um grande pote de barro cheio de água fresca. Como é lindo tudo isso! É maravilhoso revisitar minha ancestralidade! Abro a porta, ela continua entrando em atrito com o piso verde da cozinha, cujas marcas são materialidades da memória dos dias de domingo, onde o “entra e sai” era quase um ritual.
Saio no quintal. Na panela de barro, no fogão a lenha, o feijão está a cozinhar. Vovó não está mais jogando milho para as galinhas. O sol está brilhando ainda mais forte, enquanto vovó não volta me protejo debaixo da coberta de palha. Olho de lado, o pilão encostado na parede tem resquícios de milho. Como é lindo ver vovó pilar o milho! Como é linda a música provida desse movimento!
Escuto a voz de vovó, ela canta um dos benditos de Nossa Senhora. Sigo movida pela canção. Vejo-a então regando uma planta de pequenos botões, prestes a desabrocharem. Chamo por ela, que coloca o regador no chão e vem correndo me abraçar, sigo em sua direção. O vento balança sua saia longa e florida enquanto caminha. Está descalça, o cabelo preso com uma tira de retalho rosa. Seus olhos estão brilhando tanto! Peço sua benção, sou abençoada. Beijamos a mão uma da outra, nos abraçamos, como sinal de amor. Beijo-lhe com ternura. Logo vovô aparece com os dois baldes de água tirados da cacimba.
Pergunto a vovó pelo motivo do retalho rosa no cabelo, e ela me conta que é a sobra de tecido que usou para fazer algumas bonecas de pano, que uma senhora comerciante havia encomendado. Ela me chama pra ver as suas criações. Sempre fui apaixonada por bonecas de pano, e, sobretudo, pelas de vovó. As bonecas estão em cima da mesa de jantar, são pequenas e médias, de cabelos pretos e amarelos, com vestidinhos, sapatos e luvas de diferentes cores. Na mesa está também um jarro de barro, lilás com florezinhas brancas, pintado por vovó. Vovó lembra que o feijão está bom e sai às pressas para tirar a panela do fogo. É tão bom sentir novamente o cheiro do seu feijão! É tão bom sentir esse amor!
Nesse momento, a brisa do jardim fica mais forte, superando o calor de um tímido sol, do começo de uma manhã de inverno. O frio me faz abrir os olhos e findar a minha visitar ancestral. Não estou mais no sítio de vovó. Não posso subir no “pé de ciriguela”, me aconchegar na casa de taipa, sentir o cheiro do feijão no fogão a lenha, vislumbrar o pote grande de barro, o pilão sujo de milho, a parede do santo... Já não posso ouvir vovó chamar as galinhas, cantar seus benditos, vislumbrar sua conexão com o sagrado. Mas tudo isso está guardado em minha memória ancestral, nos valores, saberes e crenças que carrego e perpetuo no falar, no agir e no sentir. Significados e significantes, materialidades e imaterialidades ancestrais me fazem refletir sobre quem sou e o quero ser, sobre o que tenho e o que importa ter. E, sempre que regar uma planta, cheirar uma flor, pedir a benção, valorizar os mais velhos, cantar louvores aos Santos, sentir o meu chão... Estarei como a flor do meu jardim desabrochando para a conexão com a vivência e o saber ancestral, com o sagrado que habita em mim e no mundo, com tudo aquilo que vovó me ensinou.







Muito inspiradora o texto. Por hoje ser dia dos pais me recordei muito da casa do meu pai, da casa dos vovôs... E vovó. Vida longa a esse blog. A parede do santo e o pé de seriguela ainda estão comigo também. Axé.
É muito bom saber que somos relicário de nossa ancestralidade, que somos acesso pra esse encontro maior, é ótimo saber que não estamos desacompanhados.