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DE UM FINAL DE SEMANA INFINITO

De Tétis (Titânide) - 15 de agosto de 2020


Foto de Larissa Carneiro
 

Ao acordar pela manhã, por um instante, me vi inconsciente dos últimos acontecimentos; parte disso se devia à confusão iminente dos efeitos colaterais de uma vida regrada pelas cores vermelho e preto das tarjas e suas receitas especiais. Comprimida por total estranhamento e sentimento de apatia e improbidade de pensamento coerente, me vi alheia à minha própria vida. Parei por um instante e depois voltei a me sentir à deriva, mais uma vez me coloquei presa a um barco e jogando os remos fora, foi também a minha vontade de tomar as rédeas, de ir atrás de algum caminho que me permitisse enfim atracar em terras conhecidamente minhas. Ultimamente tenho feito parecer que a fonte de todos os meus problemas se deve aos efeitos do novo tratamento psiquiátrico. Todas as situações que me abalam, as relações que me limitam, tudo o que não vem funcionando como deveria na minha caminhada e que exigem de mim uma renúncia, um posicionamento, me assolam e me colocam numa posição enfraquecida, e, que ao invés lhes dar os seus devidos créditos como sendo coisas ruins e que me afetam, fantasio constantemente que elas só o são assim porque eu tenho estado dopada o suficiente para achar isso.


Entre um questionamento e outro na terapia, me deparei com a seguinte pergunta: “por que você acha que se sente bem melhor estando sozinha?”. Fui convidada a refletir sobre isso e a dizer o que talvez tenha soado óbvio demais. “Bem, quando eu me sinto sozinha estando em volta de outras pessoas a solidão parece tão mais intensa! Quando estou só, sei que estou só e quando me sinto bem eu consigo aproveitar da minha companhia intensamente; quando triste, eu aproveito o momento com a mesma intensidade e sei que é normal que eu esteja daquela forma; a tristeza é urgente, necessária, mas eu tenho a mim e eu me entendo (quer dizer... nem sempre).” Falei para ela de uma vontade contínua de me desvencilhar de situações e pessoas de quem não me sinto deveras acolhida e falei também das ocasiões, espaços, pessoas que conseguem me tranquilizar e me permitem imaginar a vida como sendo mais que uma luta incansável por sobreviver. Quando lhe disse que nenhuma decisão ainda havia sido tomada para pôr fim aos contextos que me afetam negativamente, eu quis colocar a culpa no meu estado presente. “Ah, mas acredito que não seja uma boa hora para tomar decisões, uma vez que me encontro fortemente influenciada por medicamentos e pela minha condição atual. Imagina se eu desisto disso (que não me faz bem como antes e me limita) e depois quando terminado o tratamento eu descubro que não era realmente isso o que eu queria?” e então um novo questionamento entra em cena: “Mas, você acredita mesmo que essas vontades e seu estado de inércia e apatia continuado se deve única e exclusivamente ao seu tratamento ou isso também seria fruto da sensação que tem de estar só mesmo quando está em companhia de algumas pessoas com quem você tem convivido?” A pergunta era mais ou menos assim e mais uma vez fui convidada a ir a fundo em algo que não era de forma alguma cômodo investigar...


Por um momento que pareceu infinito, pude vislumbrar o que ela queria me dizer com aquele segundo questionamento e ligeiramente me senti teletransportada para um final de semana específico, recente, único e bonito. Me vesti durante dois dias de sentimentos que a vida controlada e igual não me permitia ter até então. Mais uma vez, achava que se devia à dramática trama dos últimos acontecimentos o meu estilo de vida maçante... Hoje pela manhã, quando consegui me levantar de fato, voltei para a realidade que tem uma pessoa que mora sozinha e me debrucei sobre as atividades corriqueiras do dia a dia. Momentos depois, me permiti colocar um dos álbuns do Milton Nascimento que se tornou o meu favorito desde o dito final de semana. Me deitei e imaginei que seria bom escrever um pouco, só para desabafar mesmo, mas fui vencida pela sonolência que não era minha na realidade e achei que só deveria descansar o meu corpo que cantarolava lembranças lindas d’um sonoro Pietá. Me vi novamente diante daquele último questionamento... “Mas, como eu pude sentir tantas coisas distintas e me sentir tão acolhida quando me permiti viver dois infinitos dias sem a sombra que me acompanhava e acompanha todo esse tempo?”


Não me sentia mais motivada a fazer coisas que antes me eram fonte de um prazer descontraído, simples. Sentia que os tipos de leitura que outrora ganhavam toda a minha atenção e ampliava grandemente o meu desejo pelo singelo, instigado pela sensibilidade que transcendia àqueles escritos, haviam se perdido de vez. É estranho e ao mesmo tempo reconfortante saber que, depois daquele final de semana, eu consegui olhar de novo e enxergar algo que havia perdido há algum tempo...


Nas últimas duas semanas, num exercício que a terapeuta costuma nomear como sendo de autocuidado, eu me permiti ficar feliz estando completamente só, me vesti de mim mesma e fiquei feliz com o que via, com o que sentia. Um lapso de vida ardeu em mim. Eu dancei, cantei, imaginei cenas daquele fim de semana que me fez atravessar e perceber a dimensão de ser eu, de ser com alguém, de sentir-me, enfim, viva outra vez!


Mesmo sabendo da finitude de todas as coisas e que tudo isso que venho sentindo possa, simplesmente, se esvair como fumaça; eu estou contente em pensar que tudo isso existiu e existe em algum espaço de tempo que soa infinito tal qual aquele fim de semana de julho. Não me importa que pela inconstância do que eu sou, pela instabilidade das relações, eu não tenha mais momentos como aqueles, porque sei que terei momentos igualmente nostálgicos como o de agora, neste em que rememoro aquilo que já vivi. Sei o que Hume diz sobre as lembranças não serem dotadas de todas as cores e formas reais, já que não possuem a “vivacidade” corpórea do momento em que acontecem, mas eu não acredito que estas tenham menos importância por isso. Cada vez que lembro de todos aqueles momentos tão banais e ao mesmo tempo, tão significantes, eu me deixo ser transportada para um mundo paralelo em que tudo parece possível e real. “Há tanta coisa que, sem existir, existe demoradamente e demoradamente é nossa[...]”

 

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1 Comment


dessaaraujo3
Aug 17, 2020

Um relato bonito e profundo e já espero os próximos. Ninguém sente da mesma maneira, mas sei que muitas pessoas conhecem a solidão e algumas poucas a solitude e em algum momento iriam se identificar assim como aconteceu comigo. Espero que outras pessoas possam ler e através da leitura cconsigam ter também esperança de dias melhores, mesmo diante do caos.

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