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A ÚLTIMA JORNADA DE TAIÚNA

Por Taciano Filho - 15 de maio de 2021

 

APRESENTAÇÃO


Essa não é uma história sobre a cultura indígena. Ou melhor, não é uma história que trate especificamente sobre as muitas culturas dos muitos povos indígenas que existem no nosso país gigantesco. Como ficará claro durante a leitura, a protagonista da história é uma Kariri, e o próprio povo Kariri também ocupa uma posição central na trama. Mas é necessário ressaltar que tudo o que é mostrado nas fantásticas aventuras de Taiúna têm pouca consonância com a realidade. A nação Kariri, sua cultura, seu povo, como mostrados nas linhas dessa história, pertencem apenas ao mundo fictício de Santa Carla, que inclusive pretendo desenvolver em projetos futuros que irão além da personagem de Taiúna e do Povo Kariri.


Caso a falta de precisão entre os elementos fictícios e a cultura Cariri da nossa realidade cause incômodo a algumas pessoas, é perfeitamente compreensível. Afinal, entretenimento é quase sempre uma boa oportunidade de educar as pessoas sobre algum tema. Mas peço às pessoas que decidam ler minha história que não me taxem de preguiçoso prematuramente. Por mais que o acesso a material de pesquisa sobre o Povo que originalmente viveu em nossa região seja escasso, houve oportunidade de implementar elementos da realidade na ficção que eu desejava contar. Mas decidi não o fazer.


Quando decidi que a personagem central dessa história seria uma mulher madura, pertencente a um povo indígena brasileiro, que viveria vagando por um sertão mágico, repleto de perigos e maravilhas, escondendo muitas vezes sua origem das pessoas brancas, tudo isso me pareceu “certo”. Era como se ela já existisse em alguma realidade e eu só estivesse colocando-a em caracteres legíveis. Tentar tratar com propriedade sobre uma cultura dentro da qual eu não vivo, e quem sabe alguns dos meus ancestrais ajudaram a erradicar, isso não me deixou à vontade.


De qualquer forma, a protagonista é quem ela é. O mundo que ela vive pode ter alguma inspiração na realidade, mas as duas coisas não se confundem e muitas vezes se distanciam bastante. O que espero como autor é que a ficção gere nas leitoras e leitores interesse na realidade que a inspirou. E, claro, que gostem e se divirtam com a leitura.


No mais, espero que todos estejam bem, e desejo que todos fiquem bem.

 
  • Link para baixar em PDF: TAIÚNA

  • Se quiser continuar lendo por aqui, disponibilizei na integra o conto logo a seguir:

 

A ÚLTIMA JORNADA DE TAIÚNA


Prólogo


Os pingos da chuva eram grossos como gemas preciosas caindo do céu. E, a julgar pelo barulho que faziam quando se chocavam com qualquer objeto sólido, podiam muito bem ser. A paisagem predominantemente alaranjada, quase desértica, deitava-se sob um manto de nuvens cor de chumbo. Mandacarus e macambiras descansavam impassíveis no chão, seguros pelo abraço da terra. Os espíritos das tormentas lançavam uma lâmina de vento atrás da outra. A andarilha prendia seu capuz com força entre os dedos a cada nova lufada para manter sua cabeça protegida. A bem da verdade, a peça de pano velho e desbotado não era nenhum obstáculo para a chuva que a banhava por inteiro. O que ela pretendia manter era a sensação do capuz cobrindo-a. Era esse sentimento que a permitia continuar seguindo com coragem, em campo aberto, enfrentando a possibilidade de ser fulminada por um raio a qualquer momento. Chuvinha abençoada. Um fenômeno que sempre delineava um sorriso no seu rosto marcado pela velha cicatriz na bochecha era o cair da chuva, e a subsequente terra molhada e enegrecida.


Seguiu as trilhas e sendas gravadas no seu coração e na sua alma. Logo, o vermelho alaranjado tão icônico do sertão foi cedendo espaço para os tons de verde, marrom e negro. Embrenhar-se na floresta densa era um misto de medo e conforto. Seria impossível enumerar quantos perigos moravam na mata fechada e opressora, mas, ao mesmo tempo, aquilo a fazia lembrar exatamente de quem era. Todas as principais memórias de sua vida deviam estar correndo pelas raízes abaixo dela, de árvore em árvore, de folha em folha, até escaparem para a imensidão. Tudo o que ela foi, até a mulher que ela é no presente, poderia ser vislumbrado num fluxo de energia que percorre até o destino de todas as coisas.


Naquele momento, no entanto, seu destino era o ponto oculto da floresta, onde a paz era uma entidade viva, coletiva e invisível. Alcançou-o duas horas após o temporal ter passado. A clareira que se abria adiante era ampla, e de algum recôndito escondido emanava um calor reconfortante que, aos poucos, expulsava do corpo o cansaço e a fadiga. Seus sentidos humanos só podiam captar pequenos lampejos intermitentes no ar, muito breves para que a mente pudesse formular alguma informação a respeito; quando muito, conseguia enxergar uma exuberância especial no verde. Mas o espírito da viajante sabia que ali nunca estava sozinha. Muitas coisas existiam naquele lugar que defenderiam, a seu modo, a paz e a harmonia em seus domínios.


Por ventura, sabia respeitar e venerar esses seres, valores há muito ensinados por homens e mulheres sábias, que já desaguaram no leito supremo. Largou sua capa, suas bolsas de couro curtido, despojou-se do seu gibão e do restante de sua indumentária, e aproximou-se da feérica nascente do rio Gêmeo, entoando as preces necessárias antes de matar sua sede e banhar seu corpo. A água gélida e cristalina pulverizou o medo que se escondia agarrado à sua garganta, e espalhou-se pelo seu peito como se absorvida por uma vasta ramificação de raízes. Após finalizar seu ritual de purificação, procurou a base de árvore que oferecesse o leito mais confortável, e deitou-se ainda despida das suas rudes vestes de viajante. Observou os tímidos raios de luz dourada que dançavam com o vento por entre as frestas dos ramos de folhas e flores, e deixou-se dormir, na certeza de que repousava num santuário. E sonhou.


O chão sob seus pés era pedra bruta e selvagem, porém, o fluxo de tempo - e de pés - que já agira sobre ele era tamanho que quase se podia dizer que havia uma estrada pavimentada. O vento levantava uma nuvem de pó que se espalhava por todos os lugares, o céu era vermelho, sem nuvens e desprovido de astros. Já estava caminhando numa direção específica quando deu por si, de forma que apenas continuou seguindo seu caminho - muito embora ele lhe parecesse desconhecido. Logo, a estrada à sua frente desapareceu, revelando uma ampla e comprida escadaria que descia além do que seus olhos eram capazes de alcançar, adentrando numa bruma cinzenta.


Após descer pelas extensões oníricas de degraus, que distorceram sua percepção da passagem do tempo, viu a si mesma num salão tomado pela penumbra, onde imperava um forte cheiro de raízes podres e terra ancestral. Os sentidos espirituais da viajante não eram os mais aguçados, de maneira que a entidade na névoa à sua frente era apenas uma forma impossível de discernir, e uma presença esmagadora. “Não consigo determinar onde termina tua vontade de vir a mim, guerreira solitária, e onde começam as obras do acaso”. A voz ribombava poderosa, vinda de todos os lugares. “N-não sei se...”.“É pela tua vontade que encontrou este lugar! Se assim não fosse, nunca teria encontrado”. Entendeu de pronto que era inútil discutir com um ser que transcende causa, efeito e compreensão.


“Kaimã Taiuhna”, entoou o deus, “És a última guerreira do teu bravo povo Kariri”. A assertiva arrancou do seu peito tristeza e orgulho em igual proporção, vindas de um passado que descansava nos jardins do esquecimento parcial. “Eu sou aquele que ensinou à tua estirpe a língua secreta pela qual foste batizada, e que jamais deve ser revelada a estranhos”. “Quando era próspera, tua gente me prestou incontáveis homenagens, sem nunca entoar meu nome. As muitas desgraças e injúrias que caíram sobre mim, atingiram a vós igualmente, e eu não pranteei sozinho”. As palavras do deus eram como um poderoso rio, que podia transmitir medo ou calma com um simples marejar do seu humor. “Caminhas numa história que é contada aos meus ouvidos, e se desvela diante dos meus olhos, guerreira errante, e não é a ignorância ou o mero impulso que te trazem a mim”.


“Não sou uma tola que mede conhecimento com deuses”, respondeu Taiúna, da miudeza de sua postura altiva. “Por favor, ó grandioso e inominável, lembra a esta humilde andarilha por que ela se prostra diante de ti, pois talvez a longa caminhada tenha enterrado essa memória muito fundo no meu espírito”. Tratar com deuses e espíritos superiores era uma tarefa perigosa e delicada. Muitos antes pagaram preços desproporcionais por deslizes de dimensão desprezível. Taiúna era grata pelos seus sentidos espirituais atrofiados, assim não tinha que lidar com essas questões com tanta frequência, no entanto, já teve sua cota de contendas sobrenaturais no passado, e agora sabia pisar com cuidado no terreno arenoso. O deus respondeu ao pedido com sua voz fluvial: “Seria impossível para tu, filha do sangue, lembrar, pois o motivo que te trouxe ainda não aconteceu. Mas saber o que fazer tu irás, como se teu próprio coração o dissesse da sombra do teu peito”.


Acordou e ainda estava no santuário da floresta. Do seu estranho sonho, pouco lembrava do colóquio com o deus sem nome. Uma boa parte do que lhe foi dito estava embaralhada no fundo de sua memória, e não conseguia recordar por mais que tentasse. O pouco que trouxe consigo era uma determinação de causas turvas – precisava encontrar um certo lugar cuja localização lhe era conhecida, porém, nunca antes seus pés o tocaram. O som da relva sendo remexida chamou sua atenção. Procurando a origem do barulho avistou um portentoso cavalo vermelho se alimentando. Próximo de onde estava deitada havia um montinho de frutas e folhas comestíveis. Estava tudo bem. Após saciar sua fome aproximou-se do animal. “Como vai, meu amigo?”, acariciou seu rosto com ambas as mãos. “Não te vejo tem um tempo. Tava metido em alguma safadeza por aí, aposto”, o cavalo bufou com indiferença em resposta ao gracejo. Tocar sua pelagem rubra era como aproximar as mãos de brasas incandescentes. Taturana era um cavalo antigo. Quando Taiúna era uma jovem menina, e o montou pela primeira vez, ele já tinha a aparência que possuía agora. Desde então, nunca apresentou sinais de envelhecimento. Seu verdadeiro nome ninguém parece saber, mas ele responde pelo apelido que a garota de algumas décadas atrás lhe dera.


“Preciso iniciar uma nova viagem agora, meu companheiro. O que acha de vir comigo? Meu coração sente que posso precisar da sua ajuda”. Taturana respondeu encarando-a nos olhos, num silêncio estático. A mensagem de que ele aceitou a proposta foi recebida sem que houvesse troca de nenhum som - exceto as palavras de sua amiga – ou de qualquer outra espécie aparente de sinal. Os lagos negros dos seus olhos, por vezes, conseguiam dar expressão ao vazio.


01.


O sol e a lua encaravam-se no céu crepuscular, o cavalo parou a vários metros da ampla escadaria e se recusou a seguir. No topo dos degraus jazia uma plataforma maciça, sobre a qual repousavam as ruínas de um antigo templo, onde os ossos de heróis descansavam há tempo suficiente para que seus nomes tenham sido imortalizados nos anais do anonimato. Um vento sinistro soprava e fazia as copas das árvores no matagal circundante sibilarem coisas agourentas. Qualquer outro cavalo entraria em pânico pelo horror que as folhas sussurravam, mas Taturana descendia de uma antiga raça que precede a infante espécie humana, e coexistiu com deuses e espíritos de uma época remota.


Qualquer outro cavalo fugiria para a mata e seria tragado por um destino obscuro, jamais a ser revelado. Taturana se manteve firme. Apesar do brio, o animal não ousaria dar mais um passo adiante. Entendia que aquele lugar não fora feito para seus cascos de marfim trotarem, e, uma vez seguindo adiante, o caminho de volta se apagaria como um rastro fugaz na areia varrido pelo vento.


A guerreira desmontou do seu companheiro e lhe afagou um lado da face. “Não vai conseguir me acompanhar nessa, né?”. Compreendia as razões do bravo Taturana, pois ela mesma sentia que no topo daquela escadaria poderia encontrar o destino final do seu invólucro de carne. “Preciso encontrar o que quer que esteja escondido ali, meu irmão”, prosseguiu enquanto se desequipava do peso desnecessário. Removeu o gibão de couro, as bolsas, e até o arco junto com a aljava cheia de flechas ela depositou no chão, aos pés do cavalo cor de chamas. “Fica aí vigiando minhas coisas, então. Pra mode eu voltar e reavê-las”.


Os próprios degraus, irregulares pela erosão inclemente do tempo, exalavam o cheiro de antiguidade e esquecimento, de pó e decadência, há muito instalados. O templo era uma construção quadrangular, e tinha várias entradas em arco em cada uma de suas laterais – conforme fora instruída por seus mestres e mestras, cada uma representava a entrada de um labirinto onde um sem número de almas perdera-se para vivenciar o terror da eternidade. Por mais instruída que fosse, nem a erudição mais ancestral poderia lhe fornecer o conhecimento de qual daqueles caminhos a levaria até seu objetivo.


Percorreu todo o entorno da plataforma, perscrutando, o quanto podia, qual dos vestíbulos deveria penetrar; mas tudo o que seus olhos foram capazes de captar era escuridão. Enquanto isso, um forte vento fazia esvoaçar seu longo manto de lã, que manteve consigo, e ele a puxava como se tivesse vida própria – o capuz parecia prestes a se descosturar.


Sem obter sucesso nas suas perquirições, resolveu recorrer apenas à sua intuição, e dirigiu-se à face noroeste do templo. Escolheu o terceiro vestíbulo, da sua direita para a esquerda. Tão logo pôs os pés no limiar da escuridão maciça que se desvelava à sua frente, os pelos da sua nuca e braços eriçaram-se com a velocidade em que um raio fulmina uma árvore jovem. Jogou seu corpo para o lado de fora bem a tempo de evitar a investida do pesadelo que as trevas regurgitaram. Antes que pudesse raciocinar, já tinha puxado o velho e perverso machado que carregava junto à cintura, empunhando-o com as duas mãos à frente da besta.


Os sentidos espirituais de Taiúna podiam ser atrofiados, mas seus instintos físicos a tornavam tão mortal e perigosa quanto um feitiço de ódio. A aberração à sua frente era uma massificação de pelos negros e baba escorrendo por presas pontiagudas, que só perdiam em tamanho para suas garras. A fera não lhe deu tempo para pensar, tamanha era sua sanha por sangue. A guerreira não teve tempo de conjeturar que o pesadelo diante dela um dia fora uma pessoa, desventurada por maldição e por desdita. Uma pessoa cujo sofrimento a fez desistir completamente de qualquer resquício de civilidade, e abandonar sua essência humana. Uma pessoa tornada besta por um destino de crueldade e propósitos imperscrutáveis.


Não houve oportunidade para honra, ou para misericórdia contida. O machado cantou e assobiou no ar seus versos de dor e morte. Garras sibilaram. Carne e tecido rasgavam enquanto a guerreira se enroscava no chão com a monstruosidade. Quando a fera a tinha sob si, e estava prestes a desferir o golpe derradeiro no pescoço de sua presa, o machado enterrou-se sob sua mandíbula avantajada com tal rapidez, que olho algum teria conseguido acompanhar sua trajetória. Com um poderoso chute no tórax, a guerreira desvencilhou-se de sua captora. O monstro debatia-se no chão, engolfando uma gosma viscosa e escarlate pela fenda que desfigurou sua boca – o som que saia da sua garganta gutural era um pesadelo por si só.


Com uma piedade ligeira e forte, o machado enterrou-se no grosso pescoço coberto por um matagal de pelos negros, sem conseguir decepar a cabeça por completo. À medida que a energia nefanda daquela vida abandonava o corpo prostrado e espasmódico, pelos davam lugar a pele nua, revelando, pouco a pouco, curvas de seios e quadril, até que restou apenas uma cabeleira negra e sedosa no topo de uma cabeça desfigurada pela violência. Quando seguiu em frente, Taiúna deixou para trás o cadáver de quem um dia foi uma guerreira do seu povo - como ela mesma – cruelmente fadada a viver como escrava da lua, até desistir da própria humanidade. Sabia dos guerreiros e guerreiras que sucumbiram à maldição da bestialidade, no passado; agora condenados a uma longa existência de tormentos.


A fera lupina tinha lhe infligido vários ferimentos, além de ter rasgado seu manto em vários pontos. Muitos diriam que o mais sábio a fazer agora seria dar cabo da própria vida, a fim de evitar uma eternidade de escravidão para a perversa e inconstante dançarina do céu noturno. Mas ela tinha experiência suficiente para saber que não era tão simples assim. A deusa prateada só aceita o que lhe é oferecido. E Taiúna não tinha intenção de lhe conceder coisa alguma. Deixou o manto rasgado deslizar pelo seu corpo em direção ao chão de pedra, esperando reavê-lo no caminho de volta. Duvidou por instantes das motivações que a levaram até aquele portal de horrores anciãos, mas algo em algum ponto remoto de sua mente a fez dissipar as dúvidas e continuar seguindo os desígnios que vinham do seu coração. O breu dominou seus olhos, mas seus passos seguiram decididos pela estranha senda que se desenrolava, invisível, diante dela.

 





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